ENTENDA COMO DEVE FUNCIONAR O “INVESTIMENTO CRUZADO” EM FERROVIAS

A partir do caso da prorrogação antecipada da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) e da Estrada de Ferro Carajás (EFC), ambas da VALE

1. Histórico; 2. Motivadores da Medida; 3. Argumentos contrários à solução; 4. Instrução processual pela ANTT; 5. Acórdão nº 1947/2020 – TCU – Plenário; 6. Opinião conclusiva

1. Histórico

O Ministério dos Transportes, por meio da Portaria MT 399, de 17 de dezembro de 2015, estabeleceu as diretrizes a serem seguidas pela ANTT para a prorrogação dos contratos de concessão de ferrovias.

A ANTT editou a Resolução 4.975, de 18 de dezembro de 2015, com o objetivo de estabelecer procedimentos e diretrizes para a repactuação dos contratos de concessão de ferrovias.

A concessionária Vale S.A. requereu, ainda no ano de 2015, a prorrogação antecipada do prazo de vigência contratual das concessões da EFC e da EFVM.

A Lei 13.334/2016 criou o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Em paralelo, foi editada a Medida Provisória (MP) 752/2016, posteriormente convertida na Lei 13.448/2017, estabelecendo normas e diretrizes gerais para a prorrogação e/ou relicitação dos contratos de parceria definidos nos termos do PPI, nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da administração pública federal.

O Decreto 9.059/2017 qualificou os empreendimentos públicos federais no setor ferroviário que, nos termos da MP 752/2016, poderiam ser prorrogados ou relicitados.

O art. 25 da Lei 13.448/2017 estabeleceu que o órgão ou a entidade competente é autorizado a promover alterações nos contratos de parceria no setor ferroviário a fim de solucionar questões operacionais e logísticas, inclusive por meio de prorrogações ou relicitações da totalidade ou de parte dos empreendimentos contratados.

Por sua vez, o §1º do mesmo artigo autorizou que o órgão ou a entidade competente poderá, de comum acordo com os contratados, buscar soluções para todo o sistema e adotar medidas diferenciadas por contrato ou por trecho ferroviário que considerem a reconfiguração de malhas, admitida a previsão de investimentos pelos contratados em malha própria ou naquelas de interesse da administração pública.

2. Motivadores da medida

A ideia que está por trás dessa medida é a vantajosidade, maior eficiência, antecipação de investimentos e o aproveitamento da capacidade instalada. Por meio da renovação ou da prorrogação antecipada, investimentos que só seriam feitos depois de encerrado o prazo do contrato original e depois de realizada nova licitação, poderão ser antecipados para o momento presente, com vantagens em termos de efetividade da política pública.

E uma premissa importante também dessa inovação normativa é considerar o programa de concessões como um todo, e não olhar apenas para um projeto isolado, como se ele não fosse integrado a um sistema de transporte ferroviário, ou de modo até mais amplo, a um sistema de logística e transporte nacional que é naturalmente intermodal.

Desse modo, se são necessários investimentos hoje, a legislação procurou encontrar formas de viabilizar esses investimentos agora, mediante a inclusão dessa obrigação nos contratos em curso, mediante reequilíbrio econômico-financeiro, desde que esta alternativa seja efetivamente mais vantajosa se comparada à realização de nova licitação.

O detalhe mais relevante consiste no fato de que esses investimentos podem ocorrer em outra ferrovia, mediante construção de novos trechos diretamente pela concessionária, evitando-se assim que o poder público tenha que realizar licitação.

É uma saída inteligente sob o ponto de vista técnico e economicamente justificável na maioria dos casos, em razão das vantagens econômicas e sociais dessa antecipação de investimentos. E permite o investimento agora, muito mais célere e efetivo, em novos trechos de ferrovias.

Ainda assim, a medida não é livre de condicionantes. A lei exige análise criteriosa e respaldada em estudos que demonstrem a vantajosidade da medida se comparada a alternativa natural de respeito ao contrato e de nova licitação ao final do prazo do contrato original.

O art. 8º, caput, da Lei 13.448/2017 exige a realização de estudo técnico prévio que fundamente a vantagem da prorrogação do contrato de parceria em relação à realização de nova licitação do empreendimento. O art. 10, por sua vez, determina que os documentos do estudo técnico prévio que embasam a prorrogação antecipada dos contratos de parceria no setor ferroviário sejam disponibilizados para consulta pública, fixando-se um prazo mínimo de 45 dias para recebimento de sugestões e manifestações da sociedade.

É possível compreender melhor o funcionamento do mecanismo a partir da análise do caso concreto da prorrogação antecipada da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) e da Estrada de Ferro Carajás (EFC), ambas da VALE.

3. Argumentos contrários à solução

No âmbito da análise técnica do caso pela Seinfra-Porto-Ferrovia do Tribunal de Contas da União – TCU, foram levantadas diversas preocupações e até algumas possíveis inconstitucionalidades na medida, são elas:

3.1. Suposta fuga ao dever de licitar (art. 25, § 1º da Lei 13.448/2017): 1.1. Falta de incentivos econômicos: A administração pública já terá definido o projeto básico e o valor do orçamento global da obra, seguindo as premissas estabelecidas em contrato e, portanto, quaisquer melhorias e ajustes possíveis de serem realizados no projeto, de modo a prover maior eficiência e economicidade, em vista da aplicação da expertise do setor privado na obra, serão absorvidos pela concessionária. Isso ocorrerá porquanto não está prevista a realização da licitação da referida obra pública prevista, a qual teria o condão, por meio do processo competitivo, de obter proposta com valor mais enxuto, condizente com a melhor técnica disponível no setor construtivo privado. 1.2. Violação aos princípios constitucionais: dever de licitar seria uma “máxima constitucional”, além de citar a moralidade administrativa e o respeito aos princípios da isonomia e da impessoalidade. E ainda que o aplicador deve utilizar técnicas hermenêuticas para fins de “se encontrar o melhor sentido para a Lei considerada”. 1.3. Críticas ao modelo (riscos construtivos): Além disso, em um único processo licitatório, a Administração já poderia ter o trecho com contrato final de operação e construção (concessão precedida de obra pública), o que facilitaria sua implementação e, ao mesmo tempo, garantiria maior previsibilidade para o parceiro privado, porquanto ele próprio teria incentivos para a construção célere e com qualidade da estrutura que irá operar. A licitação desses investimentos retiraria os riscos construtivos advindos da construção de uma nova ferrovia do seio contratual da concessionária Vale S.A., à medida que os transfere para a empresa adjudicatária da futura licitação.

3.2. Defeitos na Análise de Impacto Regulatório: A AIR, da forma como apresentada originalmente, apresentaria incongruências e defeitos graves em sua metodologia.

3.3. Avaliação e indenização da base de ativos: Necessidade de levantamento da base de ativos, da base de passivos e das obras em andamento da concessão, que será levado em consideração para o ajuste do cálculo do valor de outorga, após a prorrogação contratual. A cláusula 7 da minuta de Termo Aditivo ao Contrato assevera que, no prazo de 18 meses após o início da vigência do 3º Termo Aditivo do Contrato de Concessão a Concessionária deve apresentar o levantamento de bens da EFVM.

3.4. Outras questões e irregularidades apontadas: (i) no que tange à metodologia de cômputo da tarifa de transporte de carga própria da Vale; (ii) no que tange à projeção de demanda; (iii) no tocante ao WACC utilizado nos estudos da prorrogação antecipada da Estrada de Ferro Vitória a Minas; (iv) no que tange ao direcionamento do resultado da modelagem econômico-financeiro; e (v) no que tange aos investimentos adicionais.

Em conclusão, a Unidade Técnica do TCU foi desfavorável ao prosseguimento da proposta de prorrogação antecipada do contrato de concessão da Estrada de Ferro Vitória a Minas.

4. Instrução processual pela ANTT

Ao longo do ano de 2018, foram realizadas diversas reuniões e audiências públicas. Em fevereiro de 2019, a Agência publicou o Relatório da Audiência Pública 8/2018 da EFVM. Paralelamente à apreciação inicial dos documentos listados, foram realizadas sete reuniões técnicas entre o TCU e a ANTT, para apresentação dos estudos sobre as prorrogações da EFC e da EFVM.

Houve depois complementação dos estudos técnicos. De posse de cinco alternativas regulatórias, a Agência passou a avaliar cada uma de acordo com seus impactos – usados como proxy de eficiência – e quanto a sua efetividade no endereçamento dos objetivos específicos. Os impactos de cada alternativa foram definidos pela ANTT como ‘benefícios ou custos que podem ser obtidos com a sua adoção em relação à situação atual e para as diferentes partes afetadas’.

Para além das questões específicas de mérito, a ANTT manifestou irresignação acerca de algumas propostas formulada pela unidade instrutora quanto a aspectos relacionados à discricionaridade de decisões da Agência, à suposta extrapolação do poder de determinação do Tribunal de Contas, baseado em dispositivos legais supostamente impróprios, em princípios com elevada carga de abstração ou carente de fundamentação.

Em sua manifestação, a ANTT ponderou que a legislação procurou estabelecer, especificamente no setor ferroviário, mecanismo de contrapartida construtiva da concessionária (obrigação de fazer) em substituição ao pagamento de outorga originalmente prevista (obrigação de pagar). Com isso, admitiu hipótese de investimento cruzado como legítimo instrumento de política pública para atender áreas deficitárias da infraestrutura nacional.

Enfatizou que a Lei 13.448/2017 foi editada em um contexto de necessidade urgente de expansão da infraestrutura de transportes nacional, aliada a um momento de grave crise econômica.

Lembrou que, em 20/2/2020, o STF indeferiu o pedido de medida cautelar, por sete votos a dois, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.991, ajuizada pela Procuradoria-geral da República, contra determinados dispositivos da Lei 13.448/2017, dentre os quais, aquele que autoriza a execução de investimentos alheios ao objeto do contrato prorrogado antecipadamente diretamente pelos concessionários.

O Ministério da Infraestrutura apresentou considerações acerca da possibilidade de se valer do dispositivo contido no art. 25, § 1º, da Lei 13.448/2017, que admite a alteração de contratos de parceria para solucionar questões operacionais e logísticas, inclusive mediante a previsão de investimentos em malha de interesse da administração pública, a fim de adquirir materiais e insumos para empreendimentos prioritários.

Na sequência, indicou a Ferrovia de Integração Oeste-Leste, segmento Caetité/BA – Barreiras/BA (FIOL II) e a Ferrovia Transnordestina S.A. TLSA como empreendimentos de interesse do Poder Concedente para receber esses investimentos.

E ressaltou que, dentre as obrigações do aditivo, constam: o Plano de Investimentos (investimentos com prazo determinado e investimentos condicionados à demanda (‘gatilho de investimento’); as Intervenções para Eliminação de Conflitos Urbanos; Investimentos Adicionais (intervenções, obras, atividades e serviços não previstos no Caderno de Obrigações, mas que venham a ser considerados necessários para a adequada prestação do serviço, mediante determinação da ANTT); as Especificações Técnicas Mínimas (parâmetros técnicos que deverão ser observados e indicadores para a prestação do serviço de transporte ferroviário); as Obrigações Complementares; e Compartilhamento da Infraestrutura Ferroviária e dos Recursos Operacionais (por direito de passagem e/ou tráfego mútuo).

5. Acórdão nº 1947/2020 – TCU – Plenário (Relator Bruno Dantas)

Em linhas gerais, o acórdão do TCU acatou os argumentos da ANTT e reconheceu a validade do art. 25, § 1º, da Lei 13.448/2017. Segundo o TCU, não há óbice em direcionar recursos do saldo livre do fluxo de caixa (valor de outorga) da modelagem econômico-financeira da prorrogação antecipada da EFVM para a aquisição de trilhos pela concessionária, e à sua entrega à Valec, para aplicação em sua malha ou em outra de interesse da administração, com fundamento no art. 25, § 1º, da Lei 13.448/2017, desde que, previamente à celebração do termo aditivo, o Poder Concedente discipline detalhadamente a forma de implementação desta nova diretriz, a exemplo dos procedimentos concernentes ao atendimento das especificações técnicas, ao rastreamento, à garantia, à guarda do material, à economicidade, à contabilização dos dispêndios, ao cronograma e ao direcionamento à malha que efetivamente tenha condições de instalação desses trilhos, mitigando os riscos de desvio dos princípios que nortearam a mencionada autorização legal.

Reconhece a limitação da interferência do controle nos atos do regulador: Pode-se dizer que, de acordo com o julgamento do TCU, o exercício do poder de controle de atos regulatórios e relacionados à definição de políticas públicas encontra-se em uma tênue fronteira que demanda constante exercício de autocontenção para que o Tribunal, no exercício de suas competências, evite o voluntarismo e respeite o legítimo espaço de discricionaridade do gestor e do regulador.

Exige medidas de mitigação a posteriori (aditivo): Do mesmo modo, considerando a extensão e volume de dados e informações que compõem o acervo documental do procedimento, o Tribunal deve ponderar acerca da realização de medidas de mitigação a posteriori, a exemplo do que foi feito na prorrogação da Malha Paulista, quando foi facultada a possibilidade de ajustes após a celebração do termo aditivo, mediante uma etapa específica de levantamento das bases de ativos e passivos e a previsão de reequilíbrio econômico-financeiro da avença.

Além disso, o Poder Público precisará estabelecer procedimentos a fim de se assegurar do atendimento das especificações técnicas, do rastreamento, da garantia, da guarda do material, da compatibilização dos seus preços com os de mercado, da forma de contabilização desses dispêndios, enfim, uma série de aspectos que não foram informados nesta oportunidade.

Finalmente, a escolha de empreendimentos a serem objeto desse investimento deve ser cautelosa, para que não ocorra inviabilidade prática de sua implantação. A título ilustrativo, é citada a Ferrovia Transnordestina mencionada na nota técnica do MInfra, que possui um longo histórico de irregularidades apuradas pelo Tribunal.

Na decisão que aprovar o relatório da base de ativos, a ANTT deverá promover a alteração do Valor de Outorga e, na decisão que aprovar a Base de Passivos, fixará as medidas e prazos a serem adotados pela Concessionária para reparar os danos apontados.

Ressaltou-se ainda que o valor da base de ativos possui grande relevância para a análise, pelo fato de estar diretamente ligado ao valor de outorga, pois, de acordo com a ANTT, esse valor deve incluir os créditos provenientes da base de ativos e do recurso para eliminação de conflitos urbanos, e também os débitos, porventura existentes, decorrentes da base de passivos. Assim, o valor total da base de ativos reduz diretamente o valor de outorga calculado na modelagem.

6. Opinião Conclusiva

É positivo que as leis sejam feitas para resolver os problemas reais, e seja atenta às circunstâncias e as dificuldades reais dos gestores de boa-fé, que querem fazer a diferença e entregar resultado acima de qualquer princípio jurídico hipotético ou a ser defendido em tese. Precisamos introduzir mais no Brasil a análise econômica do direito e os métodos de aferição da vantajosidade e da proporcionalidade das decisões do poder público, sujeita sempre ao controle, mas com método e métricas que possam ser aferidas e possam justificar e embasar a decisão.

A concretização dos investimentos nas novas ferrovias por meio da sistemática de investimento cruzado certamente representará um avanço significativo do setor de infraestrutura justamente nessa direção, de uma administração pública mais propositiva em termos de soluções, de órgãos reguladores mais preparados e preocupados com as consequências concretas das decisões e com sua motivação diante da realidade, baseada em estudos técnicos e em evidências.

E também de órgãos de controle que entendam a complexidade desse processo de tomada de decisão e abandonem de uma vez por todas decisões exclusivamente ancoradas em dogmas jurídicos, como os princípios abstratos, para ajudar a qualificar as decisões administrativas e testá-las à luz de suas finalidades de interesse público, ao invés de apenas desconstruir soluções e punir os nossos melhores gestores.

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