Entenda por que o novo marco legal (Lei nº 14.026/2020) é tão importante para o aumento efetivo dos investimentos no setor
por Rafael Garofano
Embora as diretrizes nacionais de 2007 já contivessem orientações para a coordenação de esforços e a institucionalização das formas de cooperação – assim como para o planejamento integrado, prestação regionalizada e uniformidade de regulação e fiscalização, a década seguinte à sua edição provou a insuficiência do aparato normativo vigente para superar os desafios do setor em termos de universalização, qualidade e cooperação.
Como resultado, o ritmo da ampliação da oferta de serviços está ainda muito aquém do esperado, inclusive de forma incompatível às metas previstas no Plano Nacional. As insuficiências normativas, somadas aos gargalos de atendimento das demandas públicas e a outros fatores igualmente relevantes – como a necessidade de ampliar a competição pelo serviço, de estimular a regionalização em busca do ganho de escala e da economicidade, de assegurar a prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário em um único contrato, de aprimorar a regulação, de assegurar cumprimento das metas de universalização e a eficiência da prestação, entre outras medidas que, no seu conjunto, recomendaram a revisão mais ampla do marco regulatório e do aparato normativo correlato –, conduziram à busca por propostas de aperfeiçoamento do modelo regulatório, inclusive no que diz respeito aos instrumentos de cooperação e a necessidade de aprimoramento dos instrumentos de governança pública.
Houve, por isso, relativo consenso em torno da necessidade de revisão e aprimoramento do marco regulatório setorial, com a intenção de promover a ampliação dos investimentos e da participação da iniciativa privada no setor, por meio da pacificação de questões controversas, incremento de segurança jurídica, maior abertura à competição, entre outras medidas correlatas. A Lei nº 14.026 de 2020 representa, portanto, o consenso possível obtido a partir de um longo processo de discussão e amadurecimento das propostas no Congresso Nacional, inaugurado ainda com a edição das medidas provisórias 844 e 868 de 2018.
De modo geral, a Lei nº 14.026/2020 procurou realizar uma revisão ampla da legislação do setor, tanto que tem sido chamada de novo marco legal do saneamento básico. Trata-se na realidade de uma atualização das leis do setor com alterações relevantes em algumas questões centrais. Uma delas, por exemplo, é a vedação à formalização de novos contratos de programa firmados sem licitação entre o titular dos serviços (Municípios ou Entidades Metropolitanas) e as Companhias Estaduais de Saneamento Básico.
A expectativa é que a ampliação dos investimentos privados, ao lado dos investimentos pelo poder público e suas entidades da administração indireta, possa promover a universalização dos serviços até 31 de dezembro de 2033 (exceto quando comprovada a inviabilidade técnica ou financeira na prestação regionalizada, hipótese em que o prazo poderá ser até 2040). Nesse sentido, todos os contratos do setor ficam condicionados à comprovação de capacidade econômico-financeira para universalizar a prestação dos serviços no prazo fixado. Inclusive os contratos vigentes terão que ser aditados para incorporar os prazos de universalização.
A revisão do marco legal procurou avançar também na governança interfederativa em relação ao exercício da função de planejamento integrado e regional dos serviços de saneamento básico, tema que não era de todo ignorado pela redação anterior da norma, mas que agora conta com reforço e esclarecimentos importantes em relação à responsabilidade dos titulares na formulação da política pública de saneamento. Além das já previstas condições de validade dos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico, a nova lei elimina qualquer dúvida que pudesse existir acerca da possibilidade de o serviço regionalizado obedecer a plano regional de saneamento básico elaborado para o conjunto de Municípios atendidos.
As disposições constantes do plano regional prevalecerão sobre aquelas constantes dos planos municipais, quando existirem, dispensando a necessidade de elaboração destes. E ainda, para facilitar o cumprimento das obrigações legais relacionadas ao planejamento, o plano regional poderá ser elaborado com suporte de órgãos e entidades federais, estaduais e municipais, além de prestadores de serviço, e poderá contemplar um ou mais componentes do serviço, com vistas à otimização do planejamento e da prestação da atividade.
De igual modo, outra inovação relevante está na concentração da competência de instituição de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico em agência federal. A ANA assume tal atribuição, com vistas a harmonizar a atuação das agências reguladoras estaduais e municipais, devendo zelar pela uniformidade regulatória do setor e pela segurança jurídica na prestação e na regulação dos serviços em âmbito nacional, o que não deixa de ser um desafio de governança interfederativa na função regulatória. A medida é relevante porque pode viabilizar a articulação institucional, uma maior uniformidade conceitual e metodológica e até mesmo uma integração sistêmica entre as agências reguladoras dos serviços de saneamento básico – função atualmente exercida tanto por Agências Estaduais quanto Agências Municipais –, e parece ter mais efeito justamente sob o ponto de vista da governança interna das entidades reguladoras, entre estas e os titulares dos serviços, ou ainda entre as diversas entidades de regulação existentes.
A fim de viabilizar, na prática, a efetividade das normas de referência, a adesão às referidas normas pelas entidades reguladoras subnacionais é condição para viabilizar o acesso aos recursos públicos federais ou a contratação de financiamentos com recursos da União. Embora a adesão tenha natureza voluntária, abre-se campo para questionar-se o uso do poder de gasto ou de orçamento da União em face da autonomia dos entes federados subnacionais.
Originalmente, a Lei não definia o que se entende por titular dos serviços de saneamento, mas atribuía a ele as atividades de planejamento, regulação e prestação direta ou indireta dos serviços que lhe incumbem. A nova redação do art. 8º estabelece que a titularidade dos serviços deve ser exercida pelos Municípios e o Distrito Federal, no caso de interesse local. Por outro lado, no caso de interesse comum, a titularidade deve ser exercida pelo Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual. E ainda, o exercício da titularidade dos serviços de saneamento poderá ser realizado também por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal, observadas algumas disposições especificadas.
Em qualquer caso, é o titular quem regula as condições de prestação do serviço que lhe compete, como, por exemplo, as hipóteses de restrição de acesso e a forma de prestação (art. 9.º, II), os parâmetros para garantia de atendimento (art. 9.º, III), os direitos e deveres dos usuários (art. 9.º, IV), a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços e o reajuste de preços (arts. 11, II, e 29), entre outros. É a ele que compete formular seus próprios regulamentos e contratos. Também lhe incumbe traçar as normas de regulação que prevejam os meios para o cumprimento das diretrizes da LNSB, bem como designar a entidade de regulação e fiscalização dos serviços (art. 11, III).
No que respeita às formas de contratação da prestação dos serviços de saneamento básico entre entes públicos, a redação original da LNSB citava o contrato de programa, acordo celebrado não somente entre entes federativos, mas também entre ente da Federação e entidade da Administração indireta de outro ente da Federação, ou ainda entre consórcio público e entidade da Administração indireta de ente da Federação consorciado. No entanto, a possibilidade de celebração ou mesmo de prorrogação dos atuais contratos de programa foi impedida pelo novo marco legal. De acordo com a nova redação do art. 10, a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular dependerá, necessariamente, da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária. Assim, os contratos de programa regulares vigentes permanecem em vigor somente até o advento do seu termo contratual.
Abandona-se, desse modo, um tradicional modelo de cooperação na prestação dos serviços de saneamento no Brasil, representado no vínculo que se estabelecia entre o prestador de serviços e o titular, ambos integrantes da Administração Pública. O contrato de programa estava inserido no âmbito de gestão associada e, portanto, estava sempre condicionado à prévia celebração de convênio de cooperação ou consórcio público, nos termos do art. 241 da CF.
Agora, a partir da nova redação conferida pela Lei 14.026 de 2020, a lei extingue esse modelo de contratação direta no setor, tornando obrigatória a realização de licitação para escolha do responsável pela gestão e prestação desses serviços, em regime de concessão pública precedida de licitação (art. 175 da CF). Embora a redação original da lei de 2020 previsse a possibilidade de renovação dos contratos de programa vigentes até 31.03.2022, admitindo-se prazo adicional de 30 anos, desde que comprovada a viabilidade de atendimento das metas de universalização, o dispositivo foi vetado, sob a justificativa de que a proposta “está em descompasso com os objetivos do novo marco legal do saneamento básico que orienta a celebração de contratos de concessão, mediante prévia licitação, estimulando a competitividade da prestação desses serviços com eficiência e eficácia, o que por sua vez contribui para melhores resultados“.
De modo geral, portanto, a edição e atualização do marco regulatório do setor de saneamento básico, somada à aprovação do Plano Nacional do Saneamento Básico (Plansab),[1] representa efetivo avanço em termos de política de desenvolvimento do saneamento básico no Brasil, bem como o aumento efetivo dos investimentos no setor, notadamente dos investimentos realizados com recursos da iniciativa privada. As projeções indicam um crescimento das oportunidades para investimentos em obras, concessões, parcerias público-privadas e outras formas de participação da iniciativa privada, que exigirão mais avanços no março regulatório e um maior preparo dos agentes econômicos, dos governos e das entidades de regulação para o atingimento das metas de universalização desses serviços públicos essenciais.
[1] O Governo Federal editou no dia 06.12.2013 o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que estabelece diretrizes, metas e ações para para 2023 e 2033 (horizonte final).Para os serviços de abastecimento de água potável, por exemplo, foi proposta originalmente uma redução, até 2033, de 60% do atual número de municípios em desconformidade das análises de coliformes totais, e as perdas na distribuição de água devem atingir níveis entre 29 e 33% ao final do período considerado. Em relação ao esgotamento sanitário, a meta inicial era garantir que pelo menos 87% dos esgotos gerados sejam adequadamente dispostos, atingindo-se o índice médio de tratamento de 93% do total de esgotos coletados até 2033. Em 2018, seguindo a determinação da lei, a então Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do extinto Ministério das Cidades (atual Secretaria Nacional de Saneamento do Ministério do Desenvolvimento Regional) iniciou o processo de revisão do Plano. Atualmente, a versão revisada do Plansab está em fase final de avaliação pelos Conselhos Nacionais da Saúde, do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos. Ver: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/saneamento/plansab